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    Aquários barulhentos, peixes estressados?

    Na minha primeira coluna comentei que iríamos falar mais sobre conservação na aquicultura ornamental marinha nesta edição, mas um desses dias, quando necessitava de mais concentração para trabalhar e escrever a coluna, me deparei com uma situação de extremo barulho… De um lado as britadeiras das obras dos meus vizinhos, de outro, cortadores de grama e o “bendito” soprador….e aí veio a dor de cabeça. Quem nunca se deparou com uma situação atordoante como essa? E daí surgiu a vontade de falar sobre esse assunto.

    Me lembro de um mergulho autônomo no Caribe, num cenário paradisíaco de águas cristalinas e peixes coloridos por todos os lados. Tudo era silêncio, exceto pelo som das borbulhas dos mergulhadores. Era como estar dentro de um outro mundo, colorido, vibrante e calmo. Mas, de repente, o encanto foi quebrado pelo barulho ensurdecedor dos motores de várias embarcações turísticas. O barulho atravessava a água e invadia aquele refúgio subaquático. Me senti profundamente incomodada. Tive vontade de sair da água. E foi aí que pensei: “eu posso sair… mas e os peixes e outros organismos que ali vivem?” Eles não têm escolha. Vivem ali, dia após dia, expostos a esse som que não pertence a esse mundo.

    Como será que os ruídos antropogênicos afetam os peixes recifais tanto no ambiente natural quanto em instalações de aquicultura ou em aquários?

    A questão de sons e ruídos na água dos oceanos não é nova. Diversos trabalhos tem abordado o uso do som como uma das formas de comunicação entre peixes, especialmente num recife de coral. No ambiente aquático, onde o som se propaga cerca de cinco vezes mais rápido do que no ar, sons e ruídos podem ter efeitos benéficos ou deletérios. Numa coluna anterior, o Prof. Leonardo Barcelos já abordou os efeitos positivos do uso de enriquecimento auditivo em peixes de laboratório para reduzir o estresse e melhorar o bem-estar desses organismos.

    Comunicação de peixes num recife

    Diferentemente da ideia de que o mar seria um “Mundo Silencioso”, como ficou popularizado no início da história do mergulho autônomo por Jacques-Yves Cousteau e seu amigo Frédéric Dumas, em 1953, sabe-se, desde a época de Aristóteles, que os peixes são sonoros. Em seu livro História Animalium, o filósofo diz que “…os peixes sem dúvida ouvem e sentem cheiros. Pois observa-se que eles fogem de qualquer barulho forte, como os dos remos de um barco”. “A aparente ‘voz’ de todos esses peixes é um som causado, em alguns casos, pelo movimento de fricção das brânquias, que, aliás, são ásperas; em outros casos, por partes internas na região do ventre; pois todos eles têm ar ou vento em seu interior, e, ao friccioná-lo e movê-lo, produzem os sons.”(Aristóteles, 1910, Livro 4, Parte 9).

    Peixes, entre outros organismos, emitem intencionalmente ou ativamente sons por meio de estruturas anatômicas especializadas. Estalos, grunhidos, gritos, “peidinhos” aquáticos fazem parte do cenário subaquático. E quem já teve o privilégio de mergulhar em um recife de coral sabe que o fundo do mar está longe de ser um lugar silencioso. Assim, podemos dizer que um recife de coral é na verdade um recife de “coral” musical. A diversidade de sons bióticos e abióticos, compõe um ambiente acústico rico e complexo, essencial para a comunicação entre os organismos marinhos. Para muitas espécies, ouvir e ser ouvido é tão importante quanto enxergar, especialmente onde o som viaja rápido e longe.

    Um estudo mostrou que até 75% das espécies de peixes de recifes tropicais são capazes de produzir sons de forma ativa (Hodson et al, 2025), sendo que estes podem variar conforme a espécie, idade, tamanho, sexo, status social e condição reprodutiva. Assim, o som produzido pelos peixes através da vibração da bexiga natatória, de estruturas faríngeas, do atrito entre partes do corpo, tem funções bem definidas no mundo aquático: comunicação entre indivíduos do grupo, sinal de alarme, marcação de território, navegação, acasalamento, entre outros, desempenhando um papel importante nas interações ecológicas. Um bom exemplo da importância ecológica desses sons é o recrutamento larval: sabe-se que as larvas de peixes marinhos usam os sons vindos dos recifes para se orientar durante sua migração do oceano aberto até os habitats costeiros.

    Os peixes-donzela da família Pomacentridae, abundantes nas comunidades de recifes de coral e amplamente estudados quanto à comunicação acústica, apresentam grande diversidade e complexidade em seu repertório acústico, destacam-se pelo volume e pela intensidade sonora produzida, geralmente associados a comportamentos de ameaça, interações agonísticas, acasalamento e limpeza do ninho (Lobel et al., 2010).

    Peixes-palhaço, da mesma família das donzelas, são mais discretos, mas nem por isso silenciosos. Sons emitidos por estes peixes podem demonstrar agressividade em resposta a ameaça (investida e perseguição), ou submissão (emitidos por indivíduos subordinados diante de peixes dominantes). Ambos os tipos de sons apresentam variações intraespecíficas associadas ao tamanho dos peixes, indicando que certas características acústicas (como a frequência dominante e a duração do pulso) podem servir como pistas importantes para o reconhecimento individual dentro do grupo. Essas observações são particularmente relevantes, considerando que a estrutura social dos peixes-palhaço é baseada em uma hierarquia que se baseia no tamanho dos indivíduos (Colleye & Parmentier, 2012).

    Como nós interferimos nessa comunicação?

    Desde a Revolução Industrial, o ruído antropogênico tem crescido, tanto em variedade quanto em intensidade, alterando a paisagem sonora de muitos ecossistemas terrestres e aquáticos. Estudos sugerem que os níveis de ruído ambiente de baixa frequência no oceano aberto aumentaram aproximadamente 3,3 dB por década durante o período de 1950 a 2007 (Frisk 2012). Esses sons, em sua maioria causados por atividades humanas, proveniente principalmente de fontes como tráfego de embarcações a motor, transporte marítimo, exploração de recursos (levantamentos sísmicos e perfurações), acabam dominando essas frequências mais baixas e se sobrepõem às faixas usadas por muitos animais marinhos para ouvir e se comunicar (Duarte et al., 2021), o que é bastante preocupante. Tanto é que, segundo a Organização Mundial da Saúde (2011), o ruído causado por atividades humanas já foi reconhecido como um importante poluente global e um fator preocupante de mudança ambiental.

    Os sons gerados por atividades humanas no oceano podem provocar diversos efeitos físicos, fisiológicos e comportamentais nos peixes. Entre eles estão o aumento do comportamento de esconderijo, a redução na frequência de alimentação e nos cuidados parentais com os ovos, o aumento da movimentação e do deslocamento, além de prejuízos na orientação e respostas antipredatórias menos eficazes. Em muitos casos, os peixes até param de emitir sons quando um novo ruído invade seu ambiente acústico.

    Embora se saiba que o ruído antropogênico pode afetar negativamente os limiares de audição dos animais, a comunicação, os padrões de movimento e a busca por alimento entre outros fatores, muitas vezes é difícil traduzir esses efeitos em previsões significativas sobre a aptidão individual e as consequências em nível populacional. O ruído que altera a capacidade dos peixes de obter informações por meio do som, ou que interfere no sistema auditivo, pode ter consequências ecológicas em todas as fases do ciclo de vida dos peixes.

    Lanchas e outros barcos motorizados são considerados uma fonte prevalente e crescente de ruído antropogênico nos ambientes marinhos. Há fortes evidências de que esse tipo de ruído pode interferir na comunicação, orientação e comportamento territorial dos peixes.

    O ruído gerado por barcos motorizados não afeta apenas peixes individualmente, mas também interfere em interações interespecíficas, inclusive em relações de cooperação que são vitais para a saúde dos recifes. Pesquisas mostraram que o peixe-limpador Labroides dimidiatus se torna menos cooperativo quando exposto ao barulho de embarcações. Em vez de remover apenas parasitas, esses peixes passam a morder o muco ou o tecido saudável dos clientes, comportamento considerado “trapaça”. O mais curioso é que, sob esse ruído, os peixes-clientes, que normalmente retaliariam, perseguindo o limpador trapaceiro, não reagem como o esperado, provavelmente distraídos ou estressados pelo som. Além disso, mesmo exposições de curto prazo ao barulho de barcos resultaram em interações de limpeza mais longas, porém menos cooperativas (Nedelec et al., 2017). Isso sugere que o ruído interfere diretamente nesse mutualismo interespecífico, uma relação essencial para a saúde, a abundância e a diversidade dos recifes de coral.

    A reprodução de ruídos de motor de barco simulando a perturbação direta causada por embarcações elevaram a taxa metabólica no peixe-donzela Pomacentrus amboinensis, que, ao ser estressado por esses ruídos respondeu com menor frequência e mais lentamente a ataques predatórios simulados (Simpson et al., 2016).

    Pesquisas importantes foram realizadas para caracterizar o ruído subaquático nos oceanos e seus efeitos sobre os animais, mas ainda há uma falta de estudos sobre os níveis de ruído subaquático em aquários no hobby de aquarismo ou em oceanários, e na aquicultura, em especial nos peixes ornamentais marinhos.

    Ruídos aquícolas

    Em aquários, laboratórios e instalações de aquicultura, o ruído é frequentemente gerado por várias fontes, incluindo bombas, pedras difusoras de ar e filtros de água. De forma geral, os aquários de água salgada tendem a ser mais ruidosos do que os de água doce. Isso acontece porque eles exigem mais circulação e filtragem da água, o que significa mais equipamentos e, claro, mais ruído. Além disso, com o tempo, o desgaste dos aparelhos pode fazer com que o barulho aumente ainda mais.

    Um estudo mostrou que o nível de som em aquários domésticos pode variar bastante: de 100 até 136 decibéis (medidos em dB re 1 μPa, uma unidade usada para som na água). Em ambientes controlados, os níveis chegaram a 145 dB! (Jemmott, 2010). Esses sons, que muitas vezes passam despercebidos por nós, podem afetar a capacidade auditiva até causando perda auditiva, e desencadear uma resposta fisiológica de estresse, resultando em consequências adversas para a saúde, crescimento e reprodução de peixes.

    Vale lembrar que, em aquários ou sistemas aquícolas, os peixes não conseguem escapar das áreas com ruído intenso proveniente de equipamentos de suporte à vida, como bombas, filtros e compressores. Essa exposição crônica ao ruído pode mascarar sons biologicamente importantes, o que representa um problema sério para espécies que dependem da comunicação acústica para estabelecer território, se defender, ou mesmo para acasalar. Este mascaramento pode levar a encontros agressivos excessivos e desnecessários (e subsequente estresse social), pela não percepção dos sinais acústicos, inibição do reconhecimento de espécies, ou inibição da fonotaxia (comportamento de um animal de se mover em direção ou se afastar de uma fonte sonora), do cortejo e/ou do comportamento de acasalamento. Em outras palavras: se o ruído for alto demais, os peixes simplesmente não conseguem se “ouvir”. E, para muitos deles, isso pode significar o fim de uma boa convivência, da reprodução e até da sua própria sobrevivência!

    Verificou-se que, a partir de 3 dias após a fertilização, as frequências cardíacas dos embriões de Amphiprion ephippium e A. rubrocinctus aumentaram significativamente quando expostos ao som indicando que o som pode ser especialmente importante para o desenvolvimento dos peixes recifais (Simpson et al., 2005).

    Aquaristas profissionais de aquários públicos dos Estados Unidos investigaram o ruído ambiente em aquários que abrigam cavalos-marinhos Hippocampus sp. Os resultados surpreenderam. O nível de ruído variou bastante (116,3 a 142,9 dB re 1 μPa). Em média, os tanques apresentaram um volume de 126,1 dB, um valor considerável, especialmente quando se pensa que esses ruídos são constantes para os peixes. O material das paredes e o tipo de fundo fizeram toda a diferença. Tanques de vidro, por exemplo, foram os mais barulhentos em comparação com os de acrílico e concreto. Já aqueles sem nada no fundo foram mais ruidosos do que os com cascalho ou outros materiais (Anderson, 2013).

    O cavalo-marinho Hippocampus erectus, quando exposto cronicamente ao ruído de tanques “barulhentos” (aquários colocados em estantes de ferro com bomba de aquário fixada no centro das prateleiras) apresentou sinais claros de estresse em comparação com peixes mantidos em tanques mais silenciosos, (estante de madeira, onde as bombas foram posicionadas diretamente sobre o piso de cimento).Os indivíduos mantidos nos tanques ruidosos emitiram mais estalos e emissões de ar (considerados sinais de angústia e alterações patológicas), apresentaram níveis elevados de cortisol no plasma, alterações hematológicas como heterofilia, além de perda de peso e redução no fator de condição (Anderson et al., 2011).

    Esses resultados indicam que, os tanques e os equipamentos utilizados em aquários domésticos, públicos e instalações experimentais e comerciais podem ser suficientemente barulhentos para interferir na audição, na comunicação inter e intraespecífica, e até provocar respostas de estresse nos peixes ornamentais marinhos.

    Até que se prove que há possibilidade de que estes organismos possam de alguma forma se acostumar a determinados tipos de ruído antropogênico gerado em unidades de display, manutenção ou produção aquícola, recomenda-se que aquaristas e aquicultores considerem a adoção de medidas de isolamento acústico já na fase de projeto e montagem das instalações, visando melhorar o bem-estar, a saúde e o desempenho dos peixes mantidos em cativeiro.

    REFERÊNCIAS

    Anderson, P.A.; Berzins, I.K.; Fogarty, F.; Hamlin, H.J.; Guillette Jr., L.J. (2011). Sound, stress, and seahorses: The consequences of a noisy environment to animal health. Aquaculture, 311: 129-138.

    Anderson, P. (2013). Acoustic characterization of seahorse tank environments in public aquaria: A citizen science project. Aquacultural Engineering54(1):72–77. DOI: 10.1016/j.aquaeng.2012.11.004

    Aristotle (1910). Historia animalium (translated by DA Thompson). The internet Classics. Arquive http://classics.mit.edu//Aristotle/history_anim.html

    Colleye, O.; Parmentier, E. (2012). Overview on the diversity of sounds produced by clownfishes (pomacentridae): importance of acoustic signals in their peculiar way of life. Plos ONE, 7: e49179.

    Duarte, C.M.  et al. (2021). The soundscape of the Anthropocene ocean. Science, 371, Issue 6529. DOI: 10.1126/science.aba4658

    Frisk, G.V. (2012). Noiseonomics: The relationship between ambient noise levels in the sea and global economic trends. Scientific Reports, 2(1):437. DOI: 10.1038/srep00437

    Jemmott, C. (2010). Survey of ambient noise in aquariums. 159th Meeting Acoustical Society of America/NOISE-CON 2010, Baltimore, Maryland.

    Hodson, E.J.; Cox, K.; Juanes, F.; Looby, A. (2025). Actively soniferous tropical reef fishes are diverse, vulnerable, and valuable. Journal of Fish Biology,106:990–995.

    Lobel, P.S.; Kaatz, I.; Rice, A.N. (2010).  Acoustical behavior of coral reef fishes. In: Kathleen S. Cole (ed), Reproduction and sexuality in marine fishes: patterns and processes. PP. 307-348. DOI: 10.1525/california/9780520264335.003.0010

    Nedelec, S.L.; Mills, S.C.; Radford, A.N.; Beldade, R.; Simpson, S.D.; Nedelec, B.; Côté, I.M. (2017). Motorboat noise disrupts co operative interspecific interactions. Scientific Reports, 7, 6987. DOI:10.1038/s41598-017-06515-2

    Organização Mundial da Saúde (2011). Burden of disease from environmental noise: quantification of healthy life years lost in Europe. Geneva, Switzerland: World Health Organization.

    Simpson, S.D.; Yan, H.Y.; Wittenrich, M.L.; Meekan, M.G. (2005). Response of embryonic coral reef fishes (Pomacentridae: Amphiprion spp.) to noise. Marine Ecology Progress Series, 287: 201–208.

    Simpson, S.D.; Radford, A.N.; Nedelec, S.L.; Ferrari, M.C.O.; Chivers, D.P.; McCormick, M.I.; Meekan, M.G. (2016). Anthropogenic noise increases fish mortality by predation. Nature Communications 7:10544. DOI: 10.1038/ncomms10544.

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