
O comércio de bens alimentícios no Brasil passa por um momento de incertezas devido às instabilidades políticas e econômicas que o mundo enfrenta atualmente. Recentemente, o país foi pego de surpresa pela decisão dos Estados Unidos da América de aplicar uma tarifa de 50% a produtos brasileiros – o que inclui toda a cadeia de produção de peixes de cultivo. Essa medida provocou um grande aumento nos preços dos produtos, afetando negativamente as exportações e impactando diretamente o mercado interno. Além disso, eventos como a pandemia enfrentada há alguns anos e os conflitos mundiais cada vez mais frequentes trazem um cenário de incertezas ao país, que deve estar preparado para enfrentar esses e outros desafios no futuro. Esses e outros tópicos foram debatidos ao longo dos eventos promovidos pelas academias de ciências do Brasil e da Alemanha, ressaltando, portanto, a forte necessidade de o Brasil aumentar sua autonomia nacional em diversos setores produtivos – incluindo a aquicultura. Mas como fazer isso, considerando também o grande desafio das mudanças climáticas? Neste artigo, apresento os principais pontos discutidos ao longo desses eventos e destaco possíveis modos de ação que a aquicultura brasileira pode adotar para alcançar um futuro mais sustentável.
Os maiores desafios da aquicultura brasileira foram identificados pelos pesquisadores como:
- a) altos custos de produção;
- b) burocracia excessiva e falta de regulamentação em algumas frentes produtivas;
- c) baixo retorno e comunicação entre produtores e consumidores;
- d) falta de mão de obra qualificada;
- e) desafios crescentes relacionados às mudanças climáticas.
A aquicultura de água doce, que representa a maior fatia do mercado de produção de organismos aquáticos no país, pode se beneficiar de estratégias específicas para lidar com cada um desses desafios. Por exemplo, já sabemos que a produção aquícola de água doce é quase dez vezes menos impactante do que a produção de carne bovina, amplamente consumida no Brasil. Se desejamos um futuro com menos emissões de gases de efeito estufa, por que não produzir mais peixes? As políticas públicas nacionais voltadas ao aumento dessa produção deveriam considerar esses números e colocar a aquicultura como prioridade. Outra consideração importante feita ao longo do workshop, diante dos desafios mencionados, foi a necessidade de reconhecer as diferenças entre os sistemas de produção aquícola nas diferentes regiões do país e atuar para que as regulamentações contemplem todas as realidades sem prejudicar nenhuma delas. Não vemos tambaqui sendo produzido em igarapés no Sudeste, mas sim no Norte do país; da mesma forma, a produção de camarões no Nordeste não tem as mesmas necessidades que a produção de camarões no Centro-Oeste. Assim, foi identificado que respeitar as diferenças regionais é essencial para o desenvolvimento sustentável da aquicultura brasileira – e que, portanto, as regulamentações precisam ser ajustadas com base nessas especificidades.
Outros pontos de relevância discutidos no Policy Report foram os avanços na produção e uso de rações na aquicultura, que hoje contam com grande disponibilidade tecnológica, e a necessidade urgente de aumentar a circularidade no setor. Infelizmente, a produção de bens no Brasil ainda segue uma lógica muito linear, e práticas circulares enfrentam grande dificuldade para se tornarem competitivas. Por exemplo, ainda não há incentivos fiscais para empreendimentos que tratam seus resíduos e efluentes in situ, e algumas regulamentações atuais acabam dificultando essas ações em vez de incentivá-las – o que compromete a sustentabilidade. Dessa forma, o Policy Report traz informações atualizadas e sugestões relevantes para o aprimoramento das políticas públicas e regulamentações voltadas à aquicultura brasileira.
Um dos principais resultados do encontro foi a formulação de recomendações conjuntas que podem servir de guia não apenas para o Brasil e a Alemanha, mas também para outros países que buscam tornar sua aquicultura mais sustentável, inovadora e inclusiva. Essas recomendações se estruturam em seis pilares fundamentais:
1. Cooperação internacional
O intercâmbio científico e tecnológico é essencial para acelerar soluções. A experiência alemã em rastreabilidade, certificação e sistemas circulares complementa a expertise brasileira em produção em larga escala e diversidade de espécies. Parcerias de pesquisa, programas de intercâmbio e redes de inovação são instrumentos-chave para fortalecer a aquicultura globalmente.
2. Economia circular aplicada à aquicultura
Transformar resíduos em recursos foi um dos pontos centrais. Isso inclui o aproveitamento de subprodutos do processamento do pescado e a integração com a agricultura, utilizando efluentes e lodos ricos em nutrientes. O princípio é claro: nada deve ser considerado resíduo, mas sim insumo para outra cadeia produtiva.
3. Pesquisa e inovação
Avançar em genética, nutrição, biossegurança e tecnologias de monitoramento digital é crucial para aumentar a produtividade e reduzir impactos ambientais. Nesse contexto, o Brasil se beneficia ao fortalecer investimentos em pesquisa aplicada e aproximar universidades, centros de inovação e o setor produtivo.
4. Formação e capacitação
A carência de mão de obra qualificada continua sendo um gargalo importante. Cursos técnicos, programas de extensão rural e iniciativas de popularização da aquicultura são essenciais para atrair novos talentos e preparar profissionais para os desafios futuros do setor.
5. Políticas públicas e governança
Inovação tecnológica requer um ambiente regulatório favorável. É necessário um arcabouço normativo que incentive boas práticas, reduza a burocracia e promova sinergia entre diferentes ministérios e agências. Linhas de crédito específicas, certificações nacionais e políticas de integração institucional foram apontadas como estratégias prioritárias.
6. Envolvimento da sociedade
Comunicar os benefícios da aquicultura sustentável ao público é indispensável. O consumidor informado pode impulsionar a transição para cadeias produtivas mais responsáveis, apoiando a redução de emissões, a preservação dos ecossistemas e a segurança alimentar.
Em resumo, os debates promovidos pela Academia Brasileira de Ciências e pela Academia Nacional de Ciências da Alemanha deixaram claro que a aquicultura precisa ser vista não apenas como um setor de produção de alimentos, mas como parte de uma engrenagem maior de sustentabilidade. Ao valorizar o reaproveitamento de resíduos, investir em inovação e garantir políticas públicas que realmente funcionem, o Brasil pode transformar um dos seus maiores desafios em oportunidades. A aquicultura, quando bem conduzida, é capaz de produzir proteína de alta qualidade com menor impacto ambiental e, ao mesmo tempo, gerar inclusão social e desenvolvimento regional. Se soubermos colocar em prática as recomendações aqui discutidas, estaremos dando passos firmes para que a gestão de resíduos seja não apenas uma obrigação, mas também uma poderosa alavanca de crescimento sustentável.
Convido a todos a acessarem o relatório na íntegra, traduzido para o português, por meio do link: clique aqui. Tenho certeza que este documento será de grande contribuicão para você, leitor da coluna Gestão de Resíduos. Até a próxima!