back to top
More

    A importância do bem-estar animal na aquicultura

    Nos dias de hoje, é crescente a preocupação da sociedade sobre a utilização dos animais para a produção de alimentos. As preocupações recaem desde a forma e procedimentos de cultivo até o momento do abate.

    As razões de considerarmos o bem-estar animal na aquicultura podem ser vistas pela perspectiva dos animais em cultivo e, também, pela perspectiva humana, do produtor e do consumidor. Na perspectiva dos animais, o bem-estar animal deve ser considerado, pois a senciência dos peixes já é um consenso científico e, sendo seres sencientes, os peixes possuem a capacidade de ter emoções associadas a prazer e sofrimento, com motivações comportamentais. Além disso, sabemos que os peixes compartilham conosco boa parte das estruturas cerebrais associadas a essas emoções. Da mesma forma, similarmente aos mamíferos, os peixes têm comprovada capacidade cognitiva, como memória e aprendizado. Já na perspectiva humana, é importante ter em mente que a aceitação dos produtos da aquicultura pelos consumidores será cada vez mais influenciada pela medida em que a indústria é percebida como preocupada e incentivadora do bem-estar dos peixes, incluindo, obviamente, o momento do abate. O desafio para a piscicultura nesse contexto será demonstrar, cada vez mais, que a atividade é conduzida de forma ética e humana, com produtos saudáveis e orientados para o bem-estar.

    Mas qual a definição de bem-estar animal? De fato, temos uma combinação de definições baseadas, inicialmente, na saúde e função, ou seja, na capacidade do organismo se adaptar ao meio ambiente, mantendo saúde, vigor e produtividade. Ainda, a definição baseada na vida natural dos animais mostra que os animais têm melhor grau de bem-estar à medida que são criados em condições mais próximas ao natural da espécie, podendo expressar os comportamentos naturais da espécie. E, por fim, temos a definição baseada nos estados afetivos, que se ancora na senciência dos animais e sua capacidade de ter consciência de si próprios e emoções. Atualmente, a combinação dessas três definições é a abordagem mais aceita.

    Quase com status de definição, os paradigmas das cinco liberdades e, posteriormente, dos cinco domínios de bem-estar, procuram detalhar, em dimensões específicas, o que é relevante para o bem-estar dos animais. As cinco dimensões são: nutrição, ambiente físico, saúde, interações comportamentais e estado mental. Aplicando-se essas dimensões (liberdades, domínios) para a aquicultura, podemos dizer que a dimensão nutrição compreende aspectos da qualidade das rações ofertadas, que devem ser específicas para a fase de cultivo e em quantidade adequada e ajustada periodicamente. Preconiza, também, a avaliação periódica da taxa de conversão alimentar e fator de condição e o manejo alimentar com frequência e forma de arraçoamento ajustados para a fase e intensidade de cultivo. A dimensão ambiente físico se refere à construção de tanques de acordo com as especificações técnicas, à manutenção da qualidade de água ideal para a fase de cultivo e o uso de densidades de estocagem compatíveis com a renovação e aeração da água.

    A terceira dimensão, ou saúde, refere-se à manutenção dos peixes saudáveis, ao monitoramento frequente por meio de exames periódicos para assegurar que os peixes estão em estado saudável e à avaliação das taxas de mortalidade, da presença de escamas na água e do grau de consciência/atividade dos animais. O quarto domínio, interações comportamentais, se refere a proporcionar oportunidades de comportamento específico da espécie e à verificação de comportamentos anormais como boquejamento na superfície, frequência respiratória, padrão de natação, distribuição no tanque, coloração do corpo, comportamento social e alimentar. Por fim, a dimensão estado mental, a mais complexa de ser avaliada, se relaciona com alterações em todas as demais dimensões, além da recomendação de evitar que os peixes estejam constantemente com medo, por exemplo, pela presença de predadores para controle populacional. Ainda, se relaciona ao manejo bem programado e ajustado para evitar estresse, mas também para evitar monotonia e rotina em excesso para prevenir estados depressivos.

    Conhecendo as definições de bem-estar animal e suas dimensões, a próxima grande pergunta é sobre como podemos avaliar o grau de bem-estar dos organismos em cultivo. A avaliação do grau de bem-estar é um processo complexo, baseado em indicadores comportamentais e fisiológicos que procuram cobrir todos os aspectos detalhados nos domínios de bem-estar. O grupo de indicadores mais importante, por serem de detecção precoce e mais fácil (requer experiencia, mas não equipamentos e utensílios específicos). São exemplos de indicadores comportamentais o comportamento alimentar alterado, a agressividade anormal, o comportamento natatório individual alterado, a presença de comportamentos estereotípicos e anormais, o comportamento de boquejar na superfície, o agrupamento anormal, a imobilidade anormal e as reações anormais à presença humana. Esses indicadores vão se tornando cada vez mais efetivos e fidedignos, à medida que são verificados ao longo do tempo, por colaboradores treinados e com grande experiência. É nítido que conhecer o comportamento normal da espécie e saber reconhecer as alterações desse normal e a consequente detecção precoce de prejuízos ao bem-estar.

    O segundo grande grupo de indicadores são os fisiológicos, que, muitas vezes, requerem maior tecnologia e investimento. São exemplos de indicadores fisiológicos a frequência cardíaca, a frequência ventilatória (medida pela contagem dos batimentos operculares) e os exames sanguíneos para determinação da concentração do hormônio cortisol no sangue (hormônio que se eleva em situações de estresse) e de glicose no sangue (que também se eleva em situações estressantes).

    Todos esses indicadores, mais uma série de parâmetros relacionados às instalações, à água e à nutrição dos animais, são combinados em protocolos de avaliação de bem-estar. Esses protocolos, validados cientificamente, estão, inclusive, disponíveis na forma de aplicativos de smart phones, que são de fácil utilização e permitem uma avaliação em tempo real das propriedades de produção de espécies como a tilápia-do-Nilo e camarões peneídeos. A aplicação dessas ferramentas de avaliação de bem-estar deve ser realizada em todo o cultivo, especialmente nos pontos críticos de bem-estar durante o ciclo de produção, desde a produção de formas jovens, passando pelos variados manejos empregados durante a produção, até as despescas, transporte e abate.

    Um ponto relevante que precisamos observar é a relação do bem-estar com a imunidade dos peixes e com as respostas vacinais. O estresse, apesar de não ser o oposto único de bem-estar, certamente o impacta. Ou seja, peixes estressados não estão, certamente, em boas condições de bem-estar. E o hormônio liberado em situações de estresse que comentamos acima possui diversas ações imunossupressoras, como a redução da expressão de diversas citocinas pró-inflamatórias (importantes na comunicação e funcionamento da resposta imune); a redução da diferenciação de linfócitos e a consequente diminuição de anticorpos. Isso tudo, além de imunossuprimir os peixes, os deixando mais susceptíveis às doenças, provoca redução da resposta imune vacinal, ou seja, torna as vacinas menos eficazes ou até ineficazes.

    Na direção oposta, quase todas as estratégias de prevenção de enfermidades se relacionam diretamente com estratégias para aumentar o grau de bem-estar no cultivo. Essas estratégias compreendem uma série de ações relacionadas a cada uma das dimensões de bem-estar comentadas acima. O conjunto dessas estratégias também é comumente chamado de boas práticas de produção, de transporte e de abate. A ciência ainda mostra um poderoso conjunto de estratégias para aumento do grau de bem-estar dos animais em cultivo, nomeado como enriquecimento ambiental. O enriquecimento ambiental é o nome dado a um conjunto de alterações do ambiente para aumentar as oportunidades dos peixes demonstrarem comportamentos específicos e, consequentemente, aumentar o seu grau de bem-estar. O ambiente enriquecido oferece ao peixe controle e, por reduzir as experiências negativas como medo e frustração, melhora seu grau de bem-estar. São diversos os possíveis enriquecimentos ambientais utilizados em condições de aquicultura que podem ser divididos em tipos como o físico (estrutural), o nutricional, o sensorial e social e/ou cognitivo. Alguns exemplos de enriquecimento ambiental para aquicultura, com benefícios já comprovados cientificamente, são: a disponibilização de substrato; a instalação e estruturas para o crescimento de perifíton; a disposição de aeradores para promover corrente de água; a cor predominante do ambiente; a intensidade e período de luz (em cultivos indoor); o horário e a forma de distribuição de alimento; e, por fim, plantas e outras estruturas que aumentem a complexidade do ambiente e/ou que possam funcionar como esconderijos.

    E, depois de tantos cuidados com o bem-estar durante o cultivo, precisamos evoluir para um sistema de abate humanitário. O “abate humanitário” é um conjunto de práticas e procedimentos que são empregados para reduzir o estresse ao mínimo e evitar o sofrimento durante a fase pré-abate e o abate propriamente dito. Se tudo for bem empregado, conseguiremos minimizar ou eliminar a ansiedade, a dor e a angústia associadas ao término da vida dos peixes. Uma das principais regras é a da técnica de sangria, que deve ser aplicada rapidamente após a insensibilização para provocar a morte do animal antes da recuperação da consciência.

    De fato, a realização de abate humanitário desses animais é uma exigência ética e moral, mesmo que a normativa brasileira vigente que regula o abate de animais para açougue não contemple os peixes. Precisamos considerar que, mesmo que não existam regulamentações legais a respeito, a aquicultura brasileira deve seguir princípios éticos que garantam a saúde e o bem-estar dos peixes, dentre eles o abate humanitário. Assim, o estabelecimento de legislações para proteção dos peixes no momento do abate é necessário do ponto de vista científico, ético e moral. Para termos noção do tamanho desse problema, no Brasil, baseado nas estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Associação Brasileira de Piscicultura (PeixeBR), mais de 550 mil toneladas de tilápias são abatidas anualmente. Considerando-se um peso médio de 0,8 a 1,0 kg, esse volume implica no abate de algo entre 550 e 688 milhões de peixes, sem contar os de outras espécies de grande cultivo, como o tambaqui. Recente estudo mostrou que, desse montante, mais de 80% podem estar sendo abatidos com métodos não considerados humanitários, especialmente a hipotermia em gelo ou água gelada e morte por asfixia.

    Concluindo, são inúmeras as razões para considerarmos a importância do bem-estar animal na aquicultura. Primeiro, pois é nítido que o bem-estar “se paga” e, por isso, já fazemos muito pelo bem-estar dos peixes (ambiente, nutrição, saúde, etc.). Mas, como bem-estar é mais do que apenas não sofrer, devemos usar todas as estratégias possíveis para aumentar o grau de bem-estar dos peixes de cultivo (boas práticas + enriquecimento ambiental). E, como vimos acima, não adianta conduzir todo o processo com altos graus de bem-estar e concluí-lo abatendo os peixes com métodos não aceitos pela ótica do abate humanitário. É certo que a lucratividade, competitividade e resiliência do setor aquícola brasileiro residem em produtos orientados para o bem-estar. Vamos nos preparar para isso!

    Posts relacionados

    DEIXE UMA RESPOSTA

    Por favor digite seu comentário!
    Por favor, digite seu nome aqui

    - Advertisment -
    • Supra
    • TatilFish
    • AcquaSul
    • Beraqua
    • FAI FARMS
    • Veromar
    • Inve

    Veja também